O sol brilhava imponente nos céus de Long Island. Um calor infernal encharcava minha camisa preta. Minhas mãos, sujas pelo líquido escarlate, agarraram outro morango, lançando-o na cesta meio-vazia. Os campos de morango emanavam um cheiro adocicado que se impregnava em meu corpo e já começava a me causar enjoos. Infelizmente, aquele parecia ser o único lugar que me ajudava a não pensar. Não pensar em ninguém, não pensar nos deuses, não pensar no motivo pelo qual eu continuava ali...
Aquela indesejável tarde de sexta foi tão comum quanto os outros dias desde que eu retornei ao acampamento. Nada de missões ou pedidos exasperados do centauro coordenador do acampamento. E por um breve momento, me veio à mente a possibilidade de estar sendo evitado pelos deuses... Em parte, não me agradava ajudar os deuses a consertar seus próprios erros. Mas não posso negar que a melhor parte de estar no acampamento era poder sair o mais rápido possível em uma nova missão. Felizmente – ou não – tudo estava para mudar.
Meu corpo arqueou-se outra vez, enquanto eu colhia um novo morango. Talvez por isso não tenha percebido a presença do sátiro ao meu lado. O mesmo tratou de, repentinamente, agarrar um de meus braços e me puxar por entre os arbustos. Pensei em reclamar ou mesmo tentar me libertar. Mas já sabia o que aquilo significava. E assim continuamos, até eu ser arrastado por todo o acampamento.
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O sátiro só me largou quando já estávamos à frente da Casa Grande. Sem cerimônia, adentrei o lugar, até finalmente visualizar a figura sentada na cadeira de rodas, fitando as chamas que queimam na lareira. O semblante vazio evidenciava sua distração momentânea. Adentrei e, com um breve pigarro, chamei a atenção do centauro.
– Ah... Você está aí... – Uma expressão de desdém tomou conta da face de Quíron.
– Estou... – Respondi. A voz ainda mais carregada de desprezo.
– O que você quer, afinal?- Bom... Recentemente, tem-se ouvido muito sobre um grupo operando na Grande Maçã. Um grupo de filhos de Eros. Aparentemente, eles planejam formar um exército de mortais escravizados. – Quíron começou a passear pela sala, como estivesse incomodado com alguma coisa a qual eu não conseguia identificar.
– Os boatos falam sobre uma poção produzida pelos mesmos que colocaria os humanos sobre o controle dos filhos de Eros. E é aí que você entra.– Já entendi. – Interrompi, antes que o discurso se prolongasse mais do que eu desejava.
– E onde eu encontro esse grupo?– Eles não costumam se fixar. No momento, pelo menos, estão ocupando o New Amsterdam Theatre, na Broadway. – Uma breve pausa e um rápido suspiro.
– Charles, eu...– Isso é tudo. Vou partir imediatamente. – Outra vez o interrompi e deixei a sala imediatamente. À porta, revirei meus olhos disfarçadamente.
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Petulância. Característica que o centauro aprimorava a cada nova visita. Os passos rápidos pela grama aproximavam-me cada vez mais do chalé XVIII. Aquela mórbida tarde parecia muito mais animada para os outros semideuses. E isso só me fazia acreditar que aquele contentamento descontente era característica dos filhos de Hades, ou mesmo uma parte individual de minha personalidade.
A breve caminhada me trouxera ao único lugar confortável para mim. O chalé de Hades estava cheio de semideusas tão entediadas quanto eu. Minhas irmãs espalhavam-se pelo lugar, indiferentes à minha presença. As pedras preciosas cintilavam na imensidão do mármore negro das paredes, enquanto eu atravessava o lugar, parando à frente de minha cama. Ao pé da cama, um baú de madeira aguardava por mim. O fecho da arca tinha o formato de uma caveira com olhos brilhantes de rubi. Mais que rapidamente, abri o baú revelando os meus variados itens de batalha. Sobre a cama, comecei a colocar os objetos que levaria na missão. Logo, viam-se ali um bracelete spike, dois colares, um gorro, um smartphone e uma jaqueta de couro.
Depois de me trocar, passei a vestir uma camisa branca, calça jeans escura e um par de all-star pretos. Suspirei brevemente, fitando os objetos sobre os lençóis negros de minha cama. Tomei os colares em minhas mãos. De um, pendia um pequeno pingente em formato de garrafa, onde pequenas esmeraldas decorativas tomavam toda a minha atenção. No outro, via-se pendurado uma caveira de olhos negros. Depois de coloca-los em meu pescoço, voltei-me para o bracelete spike. O objeto, quando não se transformava em uma enorme foice, era um acessório que não faltava em minhas missões. Coloquei-o no braço direito. Logo em seguida, vesti o gorro azul e a jaqueta de couro. O Smartphone em meu bolso encerrou os preparativos para a missão.
- Garotas... – Disse, arrumando a gola da jaqueta de couro.
– Volto logo. Até lá, comportem-se. – Meus olhos fitaram ameaçadoramente as garotas. Não acho que tenha realmente assustado, mas ao menos o recado estava dado.
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Lá fora, uma comissão de despedida me aguardava. Quíron, em sua forma equina, aguardava-me, acompanhado de um semideus que trazia ao seu lado o borrão acinzentado imediatamente reconhecido.
– Crusher! – Disse. Em resposta, o Pégaso relinchou.
– Tomei a liberdade de mandar trazê-lo dos estábulos. – O centauro falou, fitando-me.
– Melhor eu não perder mais tempo. – Disse, aproximando-me do equino acinzentado. Seu pelo bem cuidado brilhava com a forte luz solar. Montei a criatura e, logo em seguida, coloquei fones em meus ouvidos. O smartphone começou a tocar uma coleção de músicas em shuffle.
– Boa sorte para mim.O animal trotou velozmente pelo acampamento, atravessando a área dos chalés, quando finalmente abriu suas majestosas asas prateadas. Alçou voo a ave graciosa, batendo asas em busca de uma corrente de ar na direção de New York. E em meus ouvidos, a melodia poderosa de Marina and The Diamonds me dizia How To Be a Heartbreaker.
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Aos poucos, as paisagens de Long Island deram espaço aos monumentais arranha-céus da Grande Maçã. Abaixo de nós, a Avenida da Broadway estava apunhada de mortais. Avistamos o New Amsterdam Theatre, quando o Pégaso, lentamente, desceu dos céus, até nos encontrarmos em um beco ao lado do teatro.
– Fique aqui e esteja atento para qualquer imprevisto. – O animal balançou a cabeça, rinchando logo em seguida. Algo que eu compreendi como um “sim”.
Os fones voltaram para meu bolso, enquanto eu surgia na rua principal. A construção em tom pastel surgiu à minha frente. As luzes que, à noite, chamavam atenção, estavam agora apagadas. O letreiro vertical que dizia NEW AMSTERDAM THEATRE também estava apagado, mas anunciava o meu destino correto. À frente da entrada, uma bilheteria vazia. E nas portas, dois seguranças maiores do que armários.
– Com licença, rapazes. Eu vim para o ensaio do musical. – Declarei imponente e arrogante, prestes a atravessar os portais abertos do teatro.
– Você não tem permissão para entrar. – Os dois armários bloquearam minha passagem, falando em uníssono. Um brilho róseo percorreu seus olhares.
– Isso não pode ser bom... – Imediatamente, dei um passo para trás. Os seguranças começaram a se aproximar. Aparentemente, o transe hipnótico dos filhos de Eros dominaram os monstruosos homens. O bracelete spike desapareceu e, em seu lugar, a foice de ferro estígio apresentou-se para o trabalho. Os mortais afastaram-se, sem pânico, como se algo impedisse a passagem deles por aquela calçada.
– Tudo bem... Eu posso cuidar disso. Eu acho.Os brutamontes avançaram contra mim. Num movimento mais rápido, consegui esquivar-me pela esquerda. Foi nesse exato momento que o segurança maior agarrou-me. Suas mãos, tão grandes quanto uma luva de beisebol, seguravam-me pelos ombros, elevando-me do chão. Contudo, a lâmina negra continuava em minhas mãos. E com um simples balançar do bastão, consegui desferir um golpe contra a perna do homem, que urrou, largando-me sobre a sarjeta e me permitindo fugir outra vez.
O segundo armário agiu rapidamente, investindo contra mim mais uma vez. Minha vantagem era possuir uma mobilidade maior, por ser mais magro do que os dois oponentes. Assim, consegui mais uma vez escapar do ataque. O bastão girou no ar, elevando a lâmina enegrecida que rapidamente envolveu o pescoço papudo do homem. E com um simples puxão, fiz o sangue jorrar de sua jugular. O grande homem despencou morbidamente sobre a calçada. Por um milésimo de segundo, pensei estar livre, até me lembrar do segundo homem.
O último segurança se recuperou do ferimento e, agora, puxava a minha jaqueta de couro preta, trazendo-me para mais perto. Tinha a impressão de que se não agisse logo, poderia ter a minha coluna vertebral facilmente entortada pelas mãos fortes do rapaz vestido de terno preto. Girei o cabo da foice outra vez. Agora, a lâmina próxima aos pés do inimigo. Isso foi o bastante para uma cratera abrir-se no chão. A terra da cratera cheirava a submundo. O buraco engoliu os pés do segurança, fazendo-o se desequilibrar e cair. Isso foi o bastante para eu elevar a foice acima de minha cabeça e, num golpe instantâneo, cravar a parte laminada no peito do rapaz. O sangue tingiu a camisa branca por dentro do terno dele, enquanto eu observava a vida deixar seu olhar.
Mal havia chegado ao New Amsterdam e já havia conseguido matar dois oponentes. Os portões agora estavam livres e eu não perdi tempo em adentrar o lugar o mais rapidamente possível.
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O espaço interno era um espetáculo a parte. A arquitetura, assim como os desenhos nas paredes, lembrava algo do gênero Barroco. Havia mais de oito camarotes nas partes mais altas e ainda uma infinidade de assentos acolchoados com veludo branco e verde. Vislumbrei o lugar um tempo. Finalmente, no palco, pude visualizar um pequeno grupo. Se qualquer mortal os visse, acreditaria que se tratava de um ensaio de uma peça qualquer, pois os mesmos estavam em volta de um enorme caldeirão, interagindo uns com os outros exatamente como em qualquer cena comum. Sentei-me em uma das cadeiras da plateia.
– Esse é um belo lugar para se esconder. – Comentei alto o bastante para que o pequeno grupo me ouvisse.
– Irmãos, vejam! É um intruso! – Um deles retrucou.
– Um intruso?– O que você quer, intruso?– Contaram-me sobre uma nova bebida ilegal pelas ruas de New York. – Repliquei quase como se soasse como uma pergunta.
Eram cinco no total. Todos se entreolharam.
– Aproxime-se, semideus... – Voltaram a falar.
– Estamos prontos para você. – Falavam como se suas frases se completassem.
Os filhos de Eros agarraram-se aos equipamentos dispostos sobre o palco. Todos equipados com espadas ou arcos. Um deles deu um passo à frente.
– Eu cuido dele. Tratem de ministrar a poção. Teremos um escravo semideus. – O rapaz disse, encerrando a frase com uma risadinha.
O garoto era um pouco mais alto do que eu. Vestia jeans e uma camisa cor-de-rosa um tanto chamativa. O rapaz equipado com uma espada de prata saltou do palco, em direção à plateia. Atravessando os corredores entre as fileiras entre os conjuntos de assentos, o garoto aproximava-se rapidamente de mim. Num salto, levantei-me da cadeira. Minha jaqueta de couro começou a transfigurar-se. A peça de roupa agora dava lugar a uma carapaça de ouro que revestia meu corpo. A armadura finalmente mostrou-se por completa. A foice em minha mão ansiava pelo momento em que ceifaria a vida do jovem semideus, posicionada à frente de meu corpo, como forma de proteção, enquanto o garoto continuava a investir velozmente na minha direção.
O filho de Eros golpeou o cabo de minha foice, com um golpe certeiro de sua espada. Isso facilitou seu avanço contra mim. O oponente levantou sua espada, meneando-a contra minha armadura. A movimentação com uma armadura era realmente dificultada, mas a proteção que proporcionava era sempre mais vantajosa. O rapaz procurava acertar uma das brechas em minha armadura, mas sem sucesso. Antes que o fizesse, a lâmina negra de minha foice encaixou-se em seu ombro direito. O leve movimento de minha arma rasgou parte de seu braço. O urro de dor derivava do poder do estígio de ferir não só o físico, como também o espirito.
Uma fúria incomensurável tomou conta do garoto. E num reflexo da dor, um chute foi a solução para me afastar. O rapaz golpeou-me no tórax com toda a força que lhe restava. O impacto do golpe me fez cair sobre uma fileira de assentos, que, felizmente, estavam acolchoados. Mas a armadura intensificou o choque, fazendo-me gritar de dor. Mas o impacto contra as cadeiras não se comparava ao golpe principal. O ar exauriu-se completamente de meus pulmões e a falta de oxigênio me fazia arfar em busca de ar. O golpe me deixara tonto, a ponto de dificultar minha recuperação. Mas finalmente consegui me levantar outra vez.
– Você não devia ter feito isso. – A voz falhava graças à falta de ar. Ao menos, a foice continuava em minhas mãos e o garoto, agora, rastejava no carpete vermelho do corredor, numa tentativa de fugir. Segurando-me nas cadeiras laterais, aproximei-me do ser agonizando e ajoelhado. A foice amaldiçoada cortou com velocidade o ar, encaixando-se piedosamente na base de seu abdome. A ponta da arma rasgou o corpo do rapaz, abrindo-lhe um buraco. Suas vísceras despencavam sobre o chão e o sangue encharcava as vestes do mesmo. Subitamente, o filho de Eros deitou-se sobre os próprios órgãos, e mergulhou na poça do próprio sangue.
Mal tive tempo de me recuperar. A cria de Eros já estava morta, quando algo penetrou com violência o banco mais próximo de mim. Uma flecha rósea cintilava, fincada no banco ao meu lado. Os outros semideuses pareciam ter conseguido completar sua poção. Voltei meu olhar para o palco. Lá, irmãos e irmãs enfiavam suas mãos dentro do enorme caldeirão no centro do palco, e estas voltavam equipadas com uma flecha semelhante à fixada no assento. Preparavam-se, empunhando arcos, prontos para despejar sobre mim uma saraivada de flechas. E assim aconteceu. Os cordéis foram liberados e uma chuva de flechas dançou nos céus, vindo de encontro a mim. Não tive tempo para mais nada, exceto me lançar entre uma fileira e outra, escondendo-me atrás das cadeiras e rezando para que resistissem ao ataque. A foice em minha mão voltou a ser um mero bracelete, enquanto a armadura se transformava mais uma vez em jaqueta. Os baques surdos sobre o fofo estofamento me protegeram do ataque. Mas eu precisava de um novo plano.
– Quase me esqueci de que ainda estavam aí. – Gritei ainda abaixado.
– Ah, sim. Sabemos ser discretos quando queremos. – Um deles replicou.
– Espero que estejam prontos para mim. – Rindo, lancei o desafio aos oponentes.
Eu precisava chegar ao palco e deter os filhos de Eros antes que fosse transformado em zumbi escravo. Uma tarefa nem um pouco fácil. Mas o plano, formulado em poucos segundos, parecia magnífico. Uma luz fraca emanou de meu pescoço. Os olhos da caveira que pendia na corrente de prata brilhavam, anunciando a chegada de alto que a prole de Eros sequer poderia prever. Em minhas mãos, o poder concentrava-se e, rapidamente, transfigurava minhas falanges em garrar negras, fortes, e demasiadamente afiadas. Era hora de agir.
Levantei-me rapidamente. E, nesse exato momento, o mundo ficou mais lento. Na verdade, eu estava mais veloz. O efeito passageiro da habilidade de meu colar durava pouco, por isso eu precisaria aproveitá-lo. Numa velocidade sobre-humana, cheguei ao palco. A velocidade me permitiu avançar mais rapidamente do que os filhos de Eros conseguiam se esquivar ou lançar flechas. Aproximei-me do primeiro. Um golpe breve com as garras foi o bastante para dilacerar a artéria e seu pescoço. Sem parar, avancei imediatamente para o segundo oponente, que já apontava sua flecha em minha direção, inutilmente. Os dedos transformados deslizaram por sobre o seu abdome, rasgando o corpo que agora manchava o chão de vermelho escarlate. Só mais duas semideusas. As únicas garotas do grupo aguardavam-me, prontas para tentar me atacar, sem sucesso como os outros. Minhas mãos envolveram a cabeça da primeira, quebrando seu pescoço facilmente. Por último, encerrei meu ataque, penetrando o pescoço da garota com as cinco garras de minha mão direita.
A velocidade, assim como a força descomunal, estava prestes a chegar ao fim, quando, num ato rápido, golpeei o grande caldeirão, derrubando-o sobre o piso de tábua corrida. O brilho nos olhos da caveira se apagou. A força e a velocidade esgotaram enquanto eu observava um líquido rançoso e róseo escorrer do caldeirão derrubado, cobrindo o piso e, logo em seguida, evaporando. À minha volta, um grupo de semideuses tragicamente mortos. E, mais uma vez, a situação lembrou-me uma encenação. E estar no palco quase me fazia ouvir os aplausos do inusitado show.
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Depois de deixar o New Armstrong Theatre, reencontrei-me com Crusher, que me aguardava impaciente no beco ao lado. O lugar, ou mesmo a cidade, pareciam não agradar a criatura selvagem. Assim, montei na criatura e me vi ascendendo em direção à Long Island de sempre.
A viagem não foi longa, mas o sol já começava a se esconder por trás das colinas mais distantes. No acampamento, um fluxo inconstante de garotos e garotas já se dirigia para o refeitório. Lá, anunciaria o êxito de minha missão ao centauro responsável pelo acampamento e, ao mesmo tempo, recuperaria a energia perdida no breve passeio à gloriosa New York. Crusher relinchou, declinando cada vez mais, e mais, enquanto os estábulos se aproximavam de nós cada vez mais, e mais...